segunda-feira, 7 de junho de 2021

YA TU SABES! A CENA DA MÚSICA LATINO-AMERICANA E CARIBENHA EM FOZ DO IGUAÇU

 


Foz do Iguaçu é uma cidade paranaense cravada no coração de uma fronteira tri-nacional, dividida pelos rios Iguaçu e Paraná, que confluem e se mesclam entre idiomas e culturas. De um lado do rio está o Paraguai – Ciudad Del Este, com o famoso comércio de importados e forte cultura indígena, tendo o guarani como um de seus idiomas oficiais. Do outro lado a Argentina – Puerto Iguazu, com seus restaurantes, feirinha e uma costañera toda iluminada. E aqui desse lado o Brasil – Foz do Iguaçu, com suas belezas naturais e uma gama de 78 etnias. Transitando pelas três cidades podemos nos deparar com lanchonetes árabes vendendo sharwarmas e esfihas, restaurantes chineses e indianos, bares latino-americanos, narguiles, sushis, paella, choripán, tererê, mate, cestas de chipa equilibradas na cabeça de vendedores de rua, feiras populares e uma diversidade de temperos e costumes. As moedas dólar, guarani, real e peso circulam pelas mãos de cambistas de rua sentados em banquinhos de madeira ao lado dos artesanatos indígenas expostos sobre um tecido no chão, vendedores ambulantes insistentes e milhares de moto-taxistas com seus capacetes amarelos atravessando pessoas e mercadorias por entre pontes que atravessam rios.

É nesse território cosmopolita que acontece uma cena musical única, calcada na diversidade e no encontro, onde tudo se mistura no caldeirão cultural de la frontera. Basta um olhar atento e sensível para perceber a grandiosidade cultural desse pedaço de chão do sul do Brasil, onde o hibridismo se faz presente de forma orgânica, dando vazão a tantas vozes que muitas vezes são ofuscadas e sufocadas pelo turbilhão midiático da cultura mercadológica.

‘Ya Tu Sabes’ é a vinheta que anuncia o aclamado encontro chamado ‘Sexta Tropical’, no hermoso Sudacas Bar, espaço latino-americano decorado com luzes da cor da noite e um enorme mapa da América do Sul grafitado na parede. Se na Espanha a palavra Sudaca foi usada de forma xenófoba contra os povos sulamericanos, por aqui significa espaço de encontro e solidariedade. A começar pelos proprietários que são a paraguaia Kathe e o chileno Gaston e também pelo acolhimento de músicos de todo o continente que se apresentam no singelo palco desse pequeno bar, contrastando com o enorme batalhão do exército localizado em frente. Enquanto nas sextas-feiras as redes sociais se enchem de mensagens com o famoso ‘sextou’, por aqui o ‘Ya Tu Sabes’ anuncia uma noite caliente que começa com aulas de Salsa, comandadas pelo cubano Pablo Mestre e a colombiana Mildred Torres. Depois das classes de dança a pista é revezada por djs de vários países. O colombiano Camilo Ortiz, a cubana Mariana Alom e o equatoriano Álvaro Glg botam o povo para bailar ao som de ritmos latino-caribenhos como a salsa, cúmbia, bachata, punta, merengue, reggaeton e clássicos brasileiros.



Ainda no Sudacas a salsa cubana se juntou ao forró nordestino em uma noite denominada Rumbaião – Salsa Forrozeira. Idealizado pelas professoras Bruna Macedo e Larissa Fostinone, o encontro busca unir em uma única noite os ritmos baião e rumba. Com a chamada: ‘aprenda forró e ensine salsa, aprenda salsa e ensine forró’ o povo lotou a pista do Sudacas. Enquanto o baile comia solto com ritmos como salsa, forró, rumba, baião, merengue, xote, cha-cha-cha e xaxado, perto dali, no pub Amarantha o embrazamento era numa noite em que se mistura funk carioca, reggaeton e pop latino. Depois da segunda edição, o Rumbaião se transformou no projeto ‘Baile Latino - Integração pela Dança’, com uma variedade maior de danças latino-americanas.
Em Foz do Iguaçu a tempo vem se construindo esse imaginário coletivo do Brasil como país latino-americano. O termo ‘brasiguaio’ é bastante utilizado para referir-se a brasileiros e paraguaios que vivem pelas duas cidades e o portunhol é falado comumente. Já nos anos 90, os comércios da Vila Portes (que faz fronteira com o Paraguai) e da Av. Morenitas (fronteira com a Argentina) utilizavam o idioma bilíngüe português e espanhol e também o portunhol selvagem que nasce da convivência entre os falantes do português-espanhol-guarani. As casas noturnas sempre reservavam um dia da semana para organizar suas festas latinas. Na entrada da Acapulco o público era surpreendido pelas lendárias ‘tequileiras’ e seus shots de tequila na badalada Sexta Latina. Já na saudosa Agência Tass o agito era na quinta-feira, na clássica Quinta Latina. O público era essencialmente formado por argentinos e paraguaios. Nessa época o comércio paraguaio estava a todo vapor e a moeda argentina ‘dolarizada’, então atravessavam a fronteira pelo custo benefício de curtir nas noites iguaçuenses. Mais tarde quando a moeda argentina se desvaloriza acontece o efeito inverso: brasileiros e paraguaios atravessam a fronteira para curtir na Argentina em bares como La Barranca, Cuba Libre e na feirinha de Puerto.

Nos anos 2.000 a vanguarda do movimento musical da cidade era o Hip-Hop e o Hardcore. No Rockn Roll tínhamos o intercâmbio com bandas paraguaias no lendário bar Taberna e Casulo Rock Bar, ambos sob o comando da Cristina Peretto. Bandas iguaçuenses como Socialmente Incorreto e Artilleria Pesada traziam a atmosfera da fronteira em suas músicas e ações. No Hip-Hop, coletivos como o MH2I, Cartel do Rap e Family Roots, expandiam o horizonte do rap. Músicas como ‘Da ponte pra lá’ de Mc Rodrigo, ‘Muamba, Marihuana, Contrabando’ de Aliados da Periferia, ‘Ponte, Fronteira, Histórias’ de Profecia da Fronteira e tantas outras canções foram ambientadas na experiência de se viver entre fronteiras. Em uma festa da Family Roots você podia ouvir muita música jamaicana e rap como dos hispanos-estadunidenses Cyprees Hill, dos cubanos Orishas e das argentinas Actitud Maria Marta. O iguaçuense Dj Caê, membro fundador do MH2I e Family Roots comandava um programa de rap numa rádio paraguaia. O epopéico ‘La Onda’ na rádio 103.5 ia ao ar nos domingos e podia ser sintonizado em Foz do Iguaçu, como muitas outras rádios e canais de TV paraguaias. Rádios e Tvs brasileiras também podiam ser sintonizadas do outro lado da fronteira, inclusive algumas rádios de Foz são sediadas no Paraguai. Um dos programas que a galera acompanhava na 103.5 era um programa baseado no reggae jamaicano e comandado pelo Dj Juan Martin Siqueira. Juan é um argentino radicado no Paraguai, adepto dos sounds systens e da música de vinil que agita a cena cultural de Ciudad Del Este com seu coletivo CDE Sounds e o evento Black Music Party. Tantos outros encontros com músicos da fronteira aconteceram no bar underground El Bardal e no festival Fiesta de La Cultura de CDE. Outro dj paraguaio que vem embalando as noites fronteiriças é o Taguato Delmonte que discoteca cúmbia espiritual e muita música com ambientação na sonoridade indígena. Um dos fundadores do MH2I, o iguaçuense Kanibal, hoje vive na argentina e integra a banda ‘Enois La Família’ que mistura o rap brasileiro ao rock argentino.



Mais um espaço latino-americano em Foz é o gastrobar Soy Loco Por Ti. Comandado pela Cristiane Palomo, o bar restaurante proporciona uma verdadeira imersão na cultura, culinária e música do continente. O ritmo tango ganha destaque na ‘Noite de Empanadas com Tango’. A clássica festa mexicana Fiesta de Los Muertos, organizada anualmente pelo Soy é ambientada em músicas latino-caribenhas de ritmo intenso, pinturas faciais e cores que se assemelham ao carnaval brasileiro. Foi com o pessoal do Soy Loco e do SouLocal que tive a oportunidade de discotecar numa noite cubana, regada a rum, charutos, comidas típicas e músicas da ilha. Na Argentina eu tive a oportunidade de me apresentar junto ao grupo de rap guarani Hae Kuera Ñande Kuera, que faz canções no idioma nativo e em espanhol, na luta pela retomada de suas terras. Foi junto a esses hermanos que dividi a grande tela no documentário Portuñol, dirigido pela cineasta porto-alegrense Thaís Fernandes. Premiado no Festival de Gramado o filme acompanhou a cultura das cidades de fronteira que falam o portunhol. Ali também conheci o grupo Vape Afropercusion, um grupo de percussão de rua argentino com forte influência da música baiana. Outro espaço de intercâmbio do lado argentino é o Espaço Cultural La BarCasa, localizado no Bairro de Las Orquídeas. O bar é mesmo numa casa, com grandes janelas de vidro que dão vista para um parque de preservação ambiental. Por ali se apresentam músicos da região e a casa também oferece aulas de dança e diversas outras atividades culturais.

Em 2010 Foz do Iguaçu deu um salto importantíssimo para se consolidar como recanto latino-caribenho no Brasil, que foi a criação da UNILA – Universidade da Integração Latino-americana. Essa universidade reúne estudantes e professores de vários estados do Brasil e de vários países latino-americanos e caribenhos, além de africanos e refugiados com visto humanitário. A música ‘latinoamérica’ do grupo Calle 13 se transformou num verdadeiro rito de passagem para quem vem a Foz estudar, trabalhar e conhecer a cena local. Foi essa canção que inspirou a criação do grupo musical Projeto Kahlo, o qual fui um dos integrantes, interpretando canções do continente. A nossa versão de latinoamérica executada ao som do cajon peruano tocado pela argentina Victoria Darling era o ponto alto da nossa performance. A música por si só já representa um pouco dessa confluência. Escrita e interpretada pelos irmãos portoriquenhos Residente e Visitante conta com a participação da peruana Susana Baca, a colombiana Toto La Momposina e a brasileira Maria Rita. Trazendo temas históricos e culturais do continente, mescla rap, salsa, cúmbia, tango e a abertura do vídeo clipe traz um locutor de rádio peruano falando em Quíchua.



A UNILA amplificou a presença latino-caribenha em Foz e em seus 10 anos de existência foi palco de várias atividades de integração cultural. Organizadas pela instituição, por professores, estudantes, funcionários e comunidade, aconteceu dentro e fora de seus muros projetos de extensão e uma série de eventos com temáticas latino-americanas, caribenhas, africanas. Festivais de música, gastronômicos, a famosa festa junina chamada ‘Junila’, festa da bandeira haitiana, calouradas pretas e outras calouradas. Na feira agroecológica – que acontece na UNILA Jardim Universitário – encontramos alimentos de produtores locais e uma gama de comidas típicas de vários países. Ali podemos tomar um café brasileiro comendo uma arepa colombiana ou venezuelana, uma chipa paraguaia ou um pão de queijo mineiro, uma empanada argentina carregada de pimenta mexicana, um chá de folhas de coca boliviana, suco de frutas brasileiras, enquanto escutamos música de todo o continente. Garrafas de mate e tererê personalizadas passeiam pelas mãos utópicas de povos que estão em Foz somando forças na desafiadora batalha de construir a integração latino-americana.




É importante salientar que falar de música latina é praticamente falar de música afro-latina e ameríndia. Boa parte dos ritmos elencados aqui vêm de origem afro-descendente e indígena. Maracatu, côco, carimbó, forró, tango, salsa, cúmbia, kompá haitiano, zouk, choro, samba, bachata, dancehall, reggaeton, rap são alguns dos ritmos que embalam as noites fronteiriças. O argentino Yaguá Pirú cantando suas chacareras; o paraguaio Orlando Martinez com suas guaranias, milongas e chamamês; a venezuelana María Betania Hernández com seu violino interpretando folclores latinoamericanos, son jarocho e joropo junto a dupla brasiguaia Clarissa Souza e Lizle Martinez Ramirez no trio Amarelo Sol; o grupo Quinteto Coisa Fina disseminando a brasilidade; a banda Onda e seu rock instrumental psicodélico carregado de referências latinoamericanas; haitianos no passo do samba, brasileiros se jogando no raboday haitiano e no dembow dominicano como se estivessem num baile funk. Isso é uma pequena amostra do que vem acontecendo na cena musical da fronteira.


Com o Coletivo No Hay Frontera, organizamos festas afrolatinas e bailes caribenhos. Estamos a frente da casa coletiva La Comuna e das produções do Estúdio Comunitário ECO. Mais focado no rap latino-caribenho produzimos por aqui o haitiano Johnny Le Majeste que escreve e canta em criolo, francês, português e espanhol. O hermano paraguaio Hipi gravou música onde mistura os idiomas guarani, espanhol, português, inglês, chinês e árabe, trazendo toda a atmosfera de Ciudad Del Este onde trabalha no comércio de rua e improvisando rimas nos ônibus. O parce colombiano Santiago Gomez Gonzalez, multi-artista de rua que produz artesanalmente suas quenas e flautas indígenas, escreve e canta rap e cumbia eletrônica. O pana venezuelano Jecke com sua música Mãe Caribe – produzida sob um sampler de tango argentino – faz um recorrido pela cultura, política e culinária do continente. Esses são alguns dos muitos músicos que passaram pelo Estúdio Comunitário gravando rap e ritmos latinos.

Outro espaço de gravação que vem fortalecendo é o Pachuca Sonora. O coletivo de articulação artística Pachuca está sediado aqui nas Três Fronteiras e trabalha com a produção de vídeos de bandas locais, que são disponibilizados em seu canal no youtube. Em outro trabalho, o vídeo clipe da canção ‘Há algo que eu gosto em você’ traz uma bachata interpretada pelo colombiano Charly Ramos em parceria com Pablo Alvarenga de Salvador e a participação da peruana Jessica Mijael e o haitiano Jerry Cantave.



Fora da ‘oficialidade’ da cidade, dos eventos organizados pela prefeitura, dos shows em grandes bares e restaurantes como o Show Latino-americano da Churrascaria Rafain ou a lenda das Cataratas no Marco das Três Fronteiras, existe toda uma movimentação cultural pelas periferias. Pequenas atividades em praças, centros culturais, casas coletivas e repúblicas estudantis são a base que sustenta a música latino-caribenha em Foz. Seja com algumas pessoas reunidas num quintal com uma fogueira, um violão, um pandeiro, um cavaquinho, um par de maracas, um cajon, até grandes eventos como a Feira da Consciência Negra da Vila C organizada pelo grupo Kaburé Maracatu, as Festas juninas da Biblioteca Comunitária do Cidade Nova ou o Café com Teatro no Teatro Barracão. Tem manifestações que só acontecem ali, longe da indústria cultural e do apelo turístico da cidade, como é o caso da Festa de Las Velitas Colombianas que no começo de dezembro pode estar rolando em várias casas onde habitam colombianos. É muito mais processo do que produto. Festa Mexicana, Luar da Tandera, Ajô da Vila, Magia Negra, Gandaia, Forró da Fossa, Arraiá Fagulha, Festa na Roça no Espaço Arapy, Guarany Rock Festival, eventos no Centro Cultural Base Um e uma série de atividades que só tem acesso quem ousa se aventurar pela vida cultural que acontece nas bordas.
*Obs:
Por conta da pandemia de coronavírus essa cena em Foz está praticamente parada.
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Artigo escrito para a Revista Perifa edição 3.
Leia a edição especial América Latina:









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